quinta-feira, outubro 30, 2008

A conta do recado

Por André Debevc

Ela era uma dessas mulheres com marca suave de biquini na alma, dourando ao sol de uma Ipanema da vida, escondendo os olhos castanhos e um ensaio do que seriam sardas atrás de um óculos grande, desses que anda na moda agora. Toda vez que ela deixava o carro, ele – um cara comum, repleto de vícios inofensivos e amigos antigos - como que numa reação automática passava a mão direita carinhosamente pelo banco do carona, querendo ainda sentir ali o calor dela.

Dizer que ele quase cheirava o banco de carro seria exagero, tudo bem, mas quase. A idéia de que todo o calor do objeto de desejo dele tinha estado ali há segundos – e ele não tinha feito nada - o deixava louco. Prestes a se declarar. A dizer que tava apaixonado, que tava amando, entre outras besteiras que todo homem já tentou usar pra levar alguém pra cama. Quanto mais quentinho o banco do carro, mais à beira de se declarar pra ela ficava. Mas declarar o que?

Ele sabia que não tinha nada na manga. Só um pouco de canalhice, uns sorrisos safados e muitas intenções bem objetivas e práticas. Nuas e cruas, diria. Mais pra nuas, claro. Ele só queria umas tardes, noites ou madrugadas sem pressa pra colocar moça na boca feito manga. E ficar ali, com aquela mulher na ponta da língua e alguns outros lugares. Até ela se desfazer mil vezes em suor e gozo, e arrumar um lugar pra ele na galeria de trepadas inesquecíveis dela. Lugar eterno, e de preferência com direito a visitas futuras sem necessidade prévia de agendamento ou joguinhos bestas. Mas como fazer isso? Perguntar diretamente era só garantia de um tapa na cara. Ela era bonita, mas não ordinária...

Como eu vinha dizendo, ele não tinha nada na manga. E ela – bonita e cobiçada – não tava muito aí pra ele não. Até o dia em que ele, distraído, esqueceu de elogiar uma mudança no cabelo dela que todo o resto do universo notou e fez questão de elogiar. Foi o suficiente pra que ela olhasse pra ele com outros olhos. Como se de repente tivesse nascido ali outro homem a ser conquistado. Certamente mais um na sua coleção de presas.

E bastou essa pequena desatenção para que algumas caronas depois, estivessem trocando beijos e amassos em frente à portaria dela. Na primeira vez que colocou as mãos entre as pernas dela, espemidas num jeans importado, ele quase explodiu de alegria e precocidade. Era muito mais quente que o banco do carro. Era muito mais quente do que ele esperava que fosse. Ela era muito mais quente do que ele esperava. A pele, a nuca, os peitos, a virilha, tudo. E como era linda.

Na penumbra então, nem se fala. A falta de luz a fazia ficar ainda mais linda - isso ele descobriu no dia em que subiu na casa dela – o peitinho um pouco menor do que ele queria que fosse (enganando a todos num desses sutiãs propaganda enganosa), a bundinha um pouco mais desafiada pela gravidade do que ele imaginava. Enfim, imperfeições que a faziam ainda mais irresistível. A moça que deixava o banco do carro quente. E ela esta a ali, a segundos de ser consumada por ele.

Taças de vinho e um início de dvd (Vanilla Sky, que ele sempre gostou mas viu mil vezes) depois, transaram, treparam e alguns outros sinônimos para todo esse lance de beijar, passar a mão, ficar pelado, beijar mais, lamber, chupar, quase fazer merda, achar a camisinha, lamber mais, colocar a camisinha e voltar a beijar pra poder gozar (com e sem trocadilho) da liberdade de ir e vir, conforme está previsto na constituição. Ufa....e olha...ela é bonita, viu?

Olhando com um sorriso sem dentes para ele mesmo no espelho do elevador do prédio bacana onde ela morava, foi essa a conclusão a que ele chegou. Moça bonita. Virilha quente. Peitinho lindinho e sem biquinho evidente, mas realmente menor do que o ideal. E aquele corriqueiro defeito que mulheres bonitas demais costumam ter: era esforçada. Tinha uns talentos, é verdade, mas estava longe de ser boa naquilo. Esforçada.

O quão boa ou ruim? Digamos que boa o suficiente para ele não ligar no dia seguinte. Mas nada que o fizesse evitar atender quando ela aparecia numa noite de semana no visor do seu celular. "- Oi lindo!" Lindo não, mas que dá sempre conta do recado.

As batatas

Por André Debevc

Acordou ainda sem saber muito bem onde estava, coisa comum nos últimos anos da sua vida. Um resto de shampoo e fumaça na cabeça recostada no seu ombro dormente não deixava dúvida: mais uma vez tinha acabado nua e bêbaba na casa de uma amiga que se divertia levando desconhecidos – quase sempre sem camisinha na carteira - para casa para brincar à três na madrugada.

A boca macia no seu peito, ainda exalando álcool e cigarro barato já até parecia ser coisa antiga e normal, mas a sensação de que toda aquela noite descolada demais não era verdadeiramente pra ela ainda soava seca e forte em manhãs assim, onde flashes de um estranho – quase sempre um pouco agressivo demais - querendo colocá-la de quatro, com a boca entre as pernas da amiga eram mais reais do que nos seus sonhos, sonhados de boca aberta.

Talvez no fundo fosse mesmo apenas uma menina sozinha, de poucos amigos sinceros, a quem nunca tivesse sido dado ou cobrado muito limite.
Desde adolescente se metia em pequenas enrascadas, como quando contraiu uma doença venérea numa noite onde mentiu para a mãe e até pegou carona na moto de um garoto sem carteira e sem nome. Aventuras doidas, segundo ela, que contava os fatos – um pouco amenizados para não chocar demais, claro - aos pais e namorados como se tivessem sido vividas por uma amiga, daquelas que você, eu e todo mundo, não conhece muito bem não.

Mas algo na manhã tardia daquela terça-feira, na luz que entrava no quarto daquele apartamento sem cortinas em Laranjeiras, onde se acostumou a andar nua para deleite dos vizinhos, incomodava um pouquinho mais. Que desculpa usaria para a mãe desta vez para justificar o roxo na coxa grossa e o andar coxo ao chegar em casa? Que tamanho teria o vazio que a separava tanto de quem um dia foi? Era isso mesmo que ela queria? Ou era isso que ela achava que teria que querer e gostar? Teria o limite dela, onde se violou pela primeira vez, sido deixado para trás de uma maneira sem volta?

De frente ao espelho do banheiro da casa da amiga, apertado e encardido pelo tempo, lavou o rosto tentando acordar e deixar a ressaca moral, já costumeira para trás. Parou sem querer os olhos na marca de nascença que um antigo namorado, já esquecido – talvez o mais carinhoso de todos – tanto gostava. Uma onda de fraçao de segundos fez que ia a invadir com nostalgia. Chegou até a ensaiar um sorriso. As melhores batatas são sempre as do fundo do saco, o velho namorado costumava dizer, nas milhares de vezes que iam matar a fome do motel num fastfood longe dali e de tudo que ela era hoje. Ele tinha razão, pensou. E então seus olhos ali, em frente à torneira fechada, se encheram de água silenciosa. Gole seco e inevitável.“As melhores batatas são sempre as do fundo do saco.”

Aquele saco - com as melhores batatas e anos da sua vida - não volta mais. Nunca mais.