quinta-feira, junho 17, 2010

Carambola

Por André Debevc

Sua cabeça encostada contra o vidro, ainda sonolenta e não necessariamente penteada denunciava ser o dia do rodízio dele na maior cidade do Brasil. Carro na garagem, estava no metrô a caminho de mais um dia de trabalho. Mais atrasado do que gostaria, mas também menos atento do que precisava estar. Nos fones de ouvido que faziam sua fronteira com o mundo externo, True Love Waits, do Radiohead, tocava numa versão acústica baixada da internet. Dá até pra ouvir o vocalista esbarrando no microfonel, ele gostava de comentar como se tivesse descoberto a pólvora. De tempos em tempos abria os olhos só para ter certeza de que não estava dormindo. Era um cara comum, desses com emprego, amigos, contas a pagar e uma vontade enorme de encontrar alguém pra tapar o buraco do seu coração, feito por uma namorada nem tão antiga que foi embora fazendo um estrago daqueles.

Uma das manias que tinha era ouvir no ipod surrado as músicas que gostava mais de uma vez antes de partir pra próxima. Mania de quem só precisava de mais uma chance, pensou um dia. Dane-se, antes do fim aperta o botão e volta pro início da música. True Love Waits. Será? Não né? Amor não espera nada. É só uma música. Era só um desejo. Olhou o relógio. Mas nem prestou atenção na hora.

Só abriu os olhos quando o vagão saiu de outra estação. Um cheiro acre-doce de carambola parecia ter embarcado. Era um cara mais apreciador de manga, mas era impossível para um sujeito com faro tão apurado ignorar o aquele cheiro de fruta em pleno vagão de metrô de São Paulo. Olhou em volta ainda tentando se decidir se estava confuso ou curioso com aquele aroma inesperado. Era como se a primavera tivesse entrado no seu vagão em plena manhã de outono. Acho até que esqueci de dizer que era outono. Agora disse.

Levou alguns momentos até perceber que aquele cheiro fresco e vivo vinha de uma nova passageira ali, em pé, duas pessoas à direita de onde ele estava sentado. Quando percebeu que a moça - de olhar levemente distraído, unhas pintadas de uma cor que quase não era cor e um pingente de crucifixo em ouro branco - tinha leves sardas na região do nariz, sorriu sozinho e lembrou de uma frase que não lembrava bem quem falou. Mas que dizia que um homem pode lembrar para o resto da vida de certas mulheres, mesmo que tenha as visto por apenas uns segundos, atravessando a rua. Era definitivamente um desses homens.

Quando acabou de dizer em silêncio essa frase para si mesmo, percebeu que estava sorrindo. Se deu conta de que estava educadamente mergulhando nas levíssimas e apaixonantes sardas da moça do cheiro de carambola e crucifixo de ouro branco, pensando, meu deus que mulher linda. E antes que ele pudesse pedir pra São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis, um pouco de coragem para falar com a moça, ela sorriu de volta pra ele e depois desviou o rosto em câmera lenta.
Foi aí que percebeu, que depois de um longo e tenebroso inverno de pouco mais de dois anos, o seu coração pulava de novo. Sem que ele tivesse nem ao menos um nome, uma voz ou telefone para celebrar. Seu poder de se iludir estava de volta, com um cheiro de fruta e um sorriso despretencioso em pleno metrô paulista. Pensou até em descer do trem atrás dela só para perguntar seu nome e o por que daquele cheiro. Só percebeu que tinha chegado na estação dele, e não na dela, quando teve que sair correndo antes das portas se fecharem. Ainda deu tempo de trocar mais um sorriso com ela quando o trem ia embora. Nem todo milagre é completo, ele pensou. Mas essa mulher sem nome, mas com sardas e cheiro, ele não esquece nunca mais. Nunca mais.