quarta-feira, julho 08, 2015

TEMPO MOVEDIÇO

Por André Debevc

Digam o que disserem, o tempo faz mesmo a sua mágica. Amnésia anestésica conveniente, alimentada pela falta a de encontros e quaisquer gestos ou palavras que lembrem, que, um dia ali existiu amor. Tempestade de areia nas retinas das lembranças. Nevoeiro calmo que chega sem querer e imobiliza, mudando a inércia pra sempre. Para que nunca mais aconteça das bocas irem ao encontro uma da outra. Para que os olhos inquietos desaprendam a dançar entre lábios e pupilas antes de entregarem a paixão como refém à saliva. O tempo, movediço, faz mesmo sua mágica. Mas memórias, essas sim, é que são umas grandes filhas da puta.

POR TRÁS DE ESPELHOS EMBAÇADOS

por André Debevc
não saberia dizer
exatamente quando,
mas um dia perdido desses,
lavando o rosto numa manhã
como tantas outras,
percebeu,
que o espelho já lhe riscava na pele
recém chegados ensaios de rugas.
e que,
além de tantos fios de cabelos,
milhares de lembranças e sensações ,
algum dia tão queridas,
também tinham ido embora
pelo ralo dos dias.
já não sabia
onde tinha posto
a coleção privativa
de dores e cicatrizes
que por tanto tempo
tinham feito dele
ele.
e
nos ecos do silêncio da manhã
de um imenso banheiro azul,
achou,
no riscos amarelos
de sua íris marrom esverdeada,
traços claros de quem
ele nunca tinha deixado de ser.
foi quando não conseguiu
segurar o sorriso
que só quem se encontra
depois de muito tempo
conhece.


a maior de todas as saudades
é de quem nunca foi embora,
mas andava esquecido há tempos. 

um beijo para sempre

Por André Debevc
quis a beijar
na primeira vez,
que a viu.
e
desde então
quis
quer
vai querer
a beijar
sempre.
coisa que só
paixão de anos
guardada por décadas
pode fazer.
beijo pensado
esperado
desejado
demais.
um beijo
pelo beijo.
condecoração
pela silenciosa dedicação de anos
a uma mesma velada paixão.
beijo
pra saber
seu o gosto dela.
sem
esperar
ou querer
nada 
além da vontade de trocar
uma vontade eterna
por uma recordação para sempre.


sonho 5D

por André Debevc

como um dia, para alguma outra coisa, disse o poeta – de repente, e não mais que de repente – estava ali, encaixado entre as coxas dela, com uma perfeição pra lá de rara (senão inédita). os corpos quentes, totalmente nus, numa cumplicidade de quem trocou muito mais do que palavras. coisa de quem só consegue se tivesse ensaiado e aperfeiçoado esse momento em um milhão de tentativas. os olhos de um dançando entre as íris e os lábios do outro. a busca, não de romance, mas de entrega ao prazer. livre de qualquer culpa ou hora de ir embora. o toque, sem qualquer cerimônia, denunciava calor, tensão, umidade. a respiração, numa batida incerta, tentando ajudar a controlar o momento. beijos cheios de gostos cheiros e calor. ritmo. e falta de ritmo. um balé de trocas. de saliva, de arrepios e suspiros. inacreditável mas possível se um dia tentado. estranho mesmo só o encaixe perfeito de um tesão nunca dito. detalhe ainda mais surreal naquele cenário de Dali. segundos antes de acordar. numa realidade onírica cheia de sensações e experiências. a saliva e o corpo nunca provados. sonho em 4D. paralelo para guardar. e difícil de esquecer.  

RECONHECÍVEL

(por André Debevc)

No silêncio do quarto escuro, vasculhando sombras no teto, quando não tem ninguém olhando, ele se enxerga como ninguém realmente o vê. Sem filtros, desculpas, concessões ou regras que vieram muito antes dele, sozinho, de olhos abertos no escuro ele é sua versão mais autêntica. Um sujeito cheio de sonhos, que dorme sempre pro mesmo lado. Pronto pra acordar com o pé direito e ser fiel a tudo que sente e verdadeiramente acredita. Começando por ele mesmo.


A VIDA IMITANDO PELÍCULA

André Debevc
Sempre quis que a vida fosse como um filme. Closes fechados. Momentos em câmera lenta. Cortes inteligentes. Planos longos e músicas de fundo escolhidas a dedo para acompanhar os momentos imitando filmagens em super 8. Tudo feito para que, aos olhos de todos, tudo parecesse perfeito. Roteiro escrito a quatro mãos e direção moderna misturando rock e romantismo. Granulados intercalando frases lindas e diálogos de dar inveja. Porque afinal, a vida em película - ou digital imitando película – foi feita para ser eternizada. Só esqueceu que filmes não duram muito mais do que duas horas. E muitos filmes, a maioria dos filmes, a gente só vê uma vez.

Só ele

Por André Debevc

Velando seu sono enfermo, pensou em acordá-la só pra dizer o quanto a amava. Mas aí lembrou que ainda não inventaram palavra para coisa de tal grandeza. Aí sorriu, lembrando que só ele e o universo sabem o que é uma coisa que não pára de crescer. Nunca pára.


cegueira imposta

Por André Debevc
monto um quebra-cabeça no escuro. de olhos vendados, hermeticamente preso num ambiente sem som ou calor, tateio palavras. hipotetizo tons. mentalmente desenho gestos e hesitações de dedos. cada momento é um capítulo. um livro que não sei capa, crítica, orelha nem autor. suspense ou mistério. com pitadas de sarcásmo. obviedade, nenhuma. me lembra uma expressão que adoro: a esgrima das palavras. vivemos nisso. duelo sem derrtotado. leio um livro no escuro, que só me dá palavras e histórias quando quer.

MIXED TAPE

Por André Debevc
Nem sempre a versão original é a melhor versão. Isso ele aprendeu com Cake tocando I will suvive. Tivesse fazendo uma lista, teria deixado, só pro caso do seu compilado tocar mais no toca-fitas autoreverse dela do que propriamente no coração. Eita versão bem feita. Vindo dele, Wish you were here seria sempre no mínimo fundamental. Talvez a versão mais lenta – feita para beijar – do Thom Yorke. Até porque metade do trabalho de criar uma mix tape era imaginar o que cada música causaria no objeto transitório do seu amor. Romeo and Juliet também não poderia faltar. Dúvida atroz entre Dire Straits ao vivo ou um bom The Killers. Society, do Eddie Vedder até poderia ser a que tem Johnny Depp dando canja. Mas algum original do Florence and The Machine e do Dashboard Confessional também tinham que caber no lado A. Para o lado B um pouco da sua própria educação musical, para arrebata-la de vez. De Fleetwood Mac a Muse. Elvis e Sinatra a Counting Crows. A arte de fazer uma fita para entregar a uma moça era uma dessas coisas que tinha ficado no fim dos anos 90. Mas para quem – como ele - tem no coração um velho toca-fita roadstar de bandeja, pendrives sempre serão só disquetes com metidos a besta.