quarta-feira, outubro 29, 2014

MANHÃ CATALÃ

por André Debevc

Longe de casa, viu o dia amanhecer enquanto ela dormia profundamente ao seu lado. Viu as luzes e os sons do dia virem aos poucos do horizonte invadindo o quarto de janela escancarada com uma educação européia impecável. Viu a escuridão ceder lugar à formas de Gaudí – ligo ali – que tinha aprendido a reconhecer do parapeito daquele sexto andar catalão, que improvisaram como casa nos últimos dias. Com ela, qualquer lugar se fazia casa em segundos. Nem que fosse um banco de aeroporto, numa conexão esdrúxula na madrugada. Virada meio de lado, com o corpo numa mornice só dela, não fazia ideia do quanto aquela cena, aquele quarto, e aqueles momentos eram pra ele a definição perfeita de felicidade. Ele, cheio de pra sempres que foram ficando pelo caminho, agora finalmente se sabia feliz de verdade. Pensou em tirar uma polaroid mental daquilo tudo para mostrar pra ela – nada a ver com idealizações e cenas fantásticas – mas aí lembrou que a felicidade de verdade não é compartilhável. É só de quem sabe a reconhecer quando a encontra. Olhou a quarta-feira se impondo lá fora, e encostou a mão na coxa mais que morna dela. Em alguma dimensão paralela, eles viverão naquele quarto catalão de janelão grandão para sempre. Na dimensão que ele partilha com o resto do mundo, ele terá certeza de que foi, é, está sendo feliz nesta manhã, e talvez consiga sossegar um pouco dessa vontade de ser feliz o tempo todo que todo mundo tem por aí.

ENCONTRO IMPROVÁVEL

Por André Debevc

Estava num desses dias em que tinha acordado nostálgico, pensando em tudo que tinha ficado pelo caminho nos caminhos que tinham o levado até ali. Brincou de trocar personagens, mudando pessoas, lugares e escolhas nos seus cenários de hoje. Voltou mais de dez anos no tempo e fingiu ter mudado de país – para outro país – quando voltou ao Brasil cheio de esperanças e certezas de que amigos e família fariam toda a diferença do mundo. Hoje sabe que exagerou nessas esperanças. Sabe que esperou demais dos outros, repetindo o mesmíssimo erro que sua mãe cometera 20 anos antes. Paciência. Por frações de segundos, que ele já sabia fazer eternos, ficou em silêncio e se exilou em si mesmo, vendo a vida e as pessoas passarem, entre rodadas despreocupadas de sangria e tapas, e se colocou na pele e rotina daqueles personagens que desconhecia, mas que ali criava como quisesse. Chegou a se reconhecer no olhar de um quarentão de barba grisalha andando com dois filhos por um parque de Madrid. Achou alguma semelhança com um corredor solitário na manhã de uma rambla de Barcelona. E se ele fosse um deles? E se ele não tivesse voltado ao Brasil quase 12 anos atrás? E se ele não tivesse conhecido quem ele conheceu? E se tivesse ido fazer da vida o que ele queria ter feito e ainda não fez até hoje? E se não tivesse escolhido o que ele escolheu? Será que ainda seria ele? Se encontrasse com ele mesmo – uma dessas versões dele que foi pra Espanha depois do fatídico 11 de setembro de 2001 – será que se reconheceria? Talvez tivesse mais feliz, mais magro, mais careca ou até menos cético. Eu não sei. Ele não sabe. Mas – por diversão inocente – gosta de imaginar que tem uma versão dele, andando pela Espanha há mais de uma década. Talvez esse ele ibérico hoje até ligue pra falar com a família no Brasil sem deixar que a irmã saiba que não é o ele que vive em São Paulo. Vai saber… Esse outro ele, cheio de outras vivências, escolhas e lembranças. Se um dia se encontrarem, não vai faltar conversa para colocar em dia. E muito menos histórias pra contar. Quando chegar a hora de irem pra casa, resta saber qual deles volta mais feliz. Eu sinceramente não saberia em quem apostar.

SEM PALAVRAS

por André Debevc

hoje não tem epígrafe. 
não tem palavras.
só silêncios. 

momentos viraram lembranças. 
presença virou ausência;
e mesmo que você não esteja mais aqui, 
não há um só pedaço dessa casa onde não te vejamos 
com aquela sua inesgotável energia e presença 
que saiu de Araguari pra ganhar o mundo.

essa casa,
essa rua,
tudo,
num imenso raio de quilômetros daqui
sempre será você.

pra mais nova de suas netas, ainda criança,
falaram que a vovó virou estrela.
Para o primeiro neto aqui,
que te teve avó por mais de quarenta anos,
você já era estrela desde sempre.
tudo que eu tinha pra dizer,
eu já disse a você.
mas não custa agradecer de novo.
e te lembrar que te amo pra sempre, tá?

até logo, vó.
não esquece de dar meu beijo aí pro vô e pro dudu.
sei que vocês agora tão juntos, olhando por nós.

ESPERANÇA DESERTA

por André Debevc

Tascou-lhe um último beijo antes de sair do carro rumo ao mundo. Longe dele ela podia ser qualquer coisa. Até mesmo uma pessoa totalmente diferente, que ele nem fazia ideia que existia. Na cabeça dele todas as mulheres poderiam sempre ter muitos papéis, vestindo personagens que nem sempre teriam que ser fiéis ao que ele conhecia dela. A verdade é que nunca se pode ter certeza do quanto você realmente conhece alguém. A vida tinha o ensinado isso. Pois ela – a vida, e quase todas as mulheres – podem ser cheias de surpresas. Quem ela seria longe dele, ele jamais saberia. Só torcia pra que essa outra personagem, que só existe quando ele não está, ainda o ame tanto e como quando ele está por perto.

Inícios

por André Debevc

O sonho é a primeira - e mais curta - distância entre dois pontos.

a maior fantasia é a realidade

por André Debevc

E lá estamos nós, num quarto de que nunca precisaríamos sair. Eternos, despidos e completos, certos de que nada da porta pra fora nos fará falta. Ali, nem roupa nos faz falta. Temos o calor dos corpos e bocas para nos alimentar. Passamos dias atando e desatando nossos braços e pernas sem lembrar que cidade pode ser lá fora. Estamos no início do amor, onde minúsculas descobertas e frações de paixão já bastam. O tempo é só uma ilusão, regra que o mundo paralelo obedece. Temos todo o futuro à nossa frente. E inocentes, achamos que vamos durar para sempre - sem ter a ideia de que dia nenhum na nossa vida juntos poderá ser melhor que aquele.

Ecos de um pedido de perdão

Por André Debevc

Nada é mais profundo que um pedido sincero de perdão. Tentativa vã de máquina do tempo, viajando ao passado, para anular palavras ditas ou escritas que feriram alguém, que - verdade seja dita - nunca se quis realmente machucar. Deposição humilde de vaidades, que só pensa em trazer de volta a paz e cumplicidade de olhares, que mesmo que opostos, jamais se fizeram inimigos. Lição de honradez que aprendemos com nossos pais, herança prática de caráteres sólidos - saber pedir perdão é ter a hombridade de assumir o erro. É assumir-se falível, passíveis de erros que somos. Feito o pedido, sincero e reto, nada mais se tem a fazer. Só o tempo - sabe-se lá quanto tempo - pode ajudar a curar a ferida. Que só quem recebeu as palavras como punhal pode arriscar saber quando cura.

DIA SEGUINTE

por André Debevc

Sempre vem o dia seguinte. Sempre. Sensação de soco na boca do estômago. Flashes do que se disse. Gente espocando ao longo do dia te contando - ou tentando contar - o que você teria feito mas não lembra. Impressão de tempos perdidos, uma noite da sua vida vivida mas jogada fora. Pelo menos no que diz respeito à memórias. Estas sim, você constrói como quer. E nem o álcool, e nem a realidade, destrói. Só o tempo corrói. Começando no dia seguinte.