quinta-feira, outubro 30, 2008

As batatas

Por André Debevc

Acordou ainda sem saber muito bem onde estava, coisa comum nos últimos anos da sua vida. Um resto de shampoo e fumaça na cabeça recostada no seu ombro dormente não deixava dúvida: mais uma vez tinha acabado nua e bêbaba na casa de uma amiga que se divertia levando desconhecidos – quase sempre sem camisinha na carteira - para casa para brincar à três na madrugada.

A boca macia no seu peito, ainda exalando álcool e cigarro barato já até parecia ser coisa antiga e normal, mas a sensação de que toda aquela noite descolada demais não era verdadeiramente pra ela ainda soava seca e forte em manhãs assim, onde flashes de um estranho – quase sempre um pouco agressivo demais - querendo colocá-la de quatro, com a boca entre as pernas da amiga eram mais reais do que nos seus sonhos, sonhados de boca aberta.

Talvez no fundo fosse mesmo apenas uma menina sozinha, de poucos amigos sinceros, a quem nunca tivesse sido dado ou cobrado muito limite.
Desde adolescente se metia em pequenas enrascadas, como quando contraiu uma doença venérea numa noite onde mentiu para a mãe e até pegou carona na moto de um garoto sem carteira e sem nome. Aventuras doidas, segundo ela, que contava os fatos – um pouco amenizados para não chocar demais, claro - aos pais e namorados como se tivessem sido vividas por uma amiga, daquelas que você, eu e todo mundo, não conhece muito bem não.

Mas algo na manhã tardia daquela terça-feira, na luz que entrava no quarto daquele apartamento sem cortinas em Laranjeiras, onde se acostumou a andar nua para deleite dos vizinhos, incomodava um pouquinho mais. Que desculpa usaria para a mãe desta vez para justificar o roxo na coxa grossa e o andar coxo ao chegar em casa? Que tamanho teria o vazio que a separava tanto de quem um dia foi? Era isso mesmo que ela queria? Ou era isso que ela achava que teria que querer e gostar? Teria o limite dela, onde se violou pela primeira vez, sido deixado para trás de uma maneira sem volta?

De frente ao espelho do banheiro da casa da amiga, apertado e encardido pelo tempo, lavou o rosto tentando acordar e deixar a ressaca moral, já costumeira para trás. Parou sem querer os olhos na marca de nascença que um antigo namorado, já esquecido – talvez o mais carinhoso de todos – tanto gostava. Uma onda de fraçao de segundos fez que ia a invadir com nostalgia. Chegou até a ensaiar um sorriso. As melhores batatas são sempre as do fundo do saco, o velho namorado costumava dizer, nas milhares de vezes que iam matar a fome do motel num fastfood longe dali e de tudo que ela era hoje. Ele tinha razão, pensou. E então seus olhos ali, em frente à torneira fechada, se encheram de água silenciosa. Gole seco e inevitável.“As melhores batatas são sempre as do fundo do saco.”

Aquele saco - com as melhores batatas e anos da sua vida - não volta mais. Nunca mais.

3 comentários:

Elisa Quadros e Valeria Semeraro disse...

que história mais munita.
descreveu superbem um desses momentos curtos que tomam dimensões universais nos poucos segundos que assombram nossa cabeça.

beijo. val.

Jongleuse disse...

Leio sempre, mas achei o texto de hoje especial!
Parabéns!

Anônimo disse...

Dede, estava com saudades dos seus textos!
lindo, profundo e colocando as minhocas da cabeca em polvorosa...
beijinhos