quarta-feira, setembro 05, 2007

Gritos de Passagem

Por André Debevc

Deus sabe como te xinguei. Deus, entre uma distração e outra, e meus amigos sabem como eu te xinguei. Tinha até um ritual, diziam eles (os amigos, porque Deus nunca se manifestou). No início estranhavam calados, mas o tempo foi escorrendo e eles passaram a fazer parte de tudo – penso que amigos de verdade são mesmo essa espécie de cúmplice calado, mesmo na mais profunda reprovação - mas ninguém protestava. Ninguém estranhava a minha dor e nem o meu ressentimento. E aí tudo passou a ser meio como que uma rotina oficial quando eu passava pelos seus pedaços da cidade. A conversa no carro cessava, baixava-se até o som de algo que tivesse tocando. Com frio ou com chuva, noite ou dia. O vidro descia, e lá do canto mais magoado de minha alma vinha o grito mais primal e ofensivo que alguém no universo podia lançar contra você. O que era dito na verdade era o que menos importava. Valia sim a força dos meus pulmões. Contava (como se tivesse um júri sempre comigo) expurgar a raiva e a dor que você me causou. Um protesto esperado. Durante meses foi assim. Sempre. E o giro das rodas continuava, meus comparsas subiam os vidros, o volume do som e retomavam o assunto como se nada tivesse acontecido, apos os segundos de silêncio em que solidarizavam comigo. Entre homens, respeita-se o soldado caído. Protocolo triste de um apocalipse sinalizado.
Tudo seguia sua seca normalidade, até que numa noite no caminho de ida para uma das partes mais idiotas da cidade, nos aproximávamos de um dos seus redutos. Baixou-se o som. Fez-se silêncio. Desceram solenemente os vidros que davam pro seu mundo. E não se ouviu um suspiro meu. Minhas palavras de ofensa para você tinham acabado. E se não tinham acabado tinham cansado daquele exercício inútil. Dias depois, até comentaram o meu silêncio: – Ele nem gritou quando a gente foi pra parte mais idiota da cidade. Alguns nem acreditaram. Eu só sorri. Em silêncio como passei a viver meus lutos. Calado como é melhor ser quando não se tem nada de bom a dizer sobre alguém.

2 comentários:

Anônimo disse...

Essas palavras me tocaram bastante!

Anônimo disse...

já disse q adoro oq vc escreve?